Quando Duas Cabeças Pensam Pior Que Uma
João era câmera-man. Trabalhava em uma emissora local. Casado há quase 4 anos, seu primeiro filho, uma menina, havia nascido há 3 meses. Sua esposa, Maria, era uma mulher tão doce que agora, escrevendo, parece impossível descrevê-la. Linda, mas com uma beleza infantil, olhos muito azuis, que davam o tom perfeito entre a pele branca e os cabelos amarelos. Possuía um charme natural, sem ensaio e sem propósito, era uma daquelas pessoas ótimas de se ver, daquelas que você se sente feliz, calmo e meio apaixonado apenas por estar próximo a ela. Nós, os amigos, evitávamos a proximidade.
João não parava de falar na filha, como todo pai coruja faz, e cada fralda suja era motivo para horas de conversa.
Sob um certo ponto de vista, todos na TV queriam ser como João. Ou pelo menos invejavam, ainda que um pouquinho só, a vida dele.
Tudo mudou naquela quarta-feira pela manhã.
Um grupo de pagode resolveu fazer uma promoção para escolher a nova dançarina. Várias candidatas compareceram aos estúdios para gravar os vídeos que seriam vistos pelos jurados. Foram mais de 100 jovens, as últimas selecionadas. Durante 4 dias, pouco mais fizemos do que ouvir pagode e ver as meninas dançando. Quarta-feira era o último dia de gravação e foi nesse dia que João se perdeu.
A Morena devia ter uns 20 anos de idade, alta, cabelos negros até a cintura, seios firmes que dispensavam sutiã, cintura fina, bumbum duro como pedra e uma cor de pele que era algo entre a canela e o mel. Os olhos verdes pareciam dois holofotes acima daqueles lábios carnudos.
João não conseguiu trabalhar. Deixou a câmera de lado, olhando para a dançarina. Eventualmente, um amigo alegou que João estava muito cansado e o substituiu na câmera. Mas ele ficou ali, na mesma posição, apenas olhando aquela mulher a dançar.
Se eu fosse uma pessoa mística, eu diria que aquele calafrio que senti naquela hora era o sinal do fim de tudo para João. Mas não falei nada e as coisas foram como foram.
Naquela noite, pela primeira vez desde que sua filha nascera, ele não foi para casa no horário. Ficou na emissora até quase 10 da noite, vendo vídeos e lendo currículos. Eventualmente, achou o que queria e só depois de achar foi para casa.
No dia seguinte, João ligou para a morena. Da sala de seu chefe, já que não queria revelar o número de seu celular. Se apresentou como sendo o diretor do grupo de pagode. Disse que havia gostado muito dela, mas que queria fazer outro vídeo. A menina concordou e, naquela noite, depois da gravação do jornal, no estúdio 2, João subornou o guarda noturno e esperou.
A morena chegou acompanhada de um homem enorme, braços incrivelmente grossos e ainda assim suave e delicado ao se mover. Foi apresentado como um primo e era claro que estava ali para garantir a segurança da morena.
João não se abalou, se desculpou pelo estúdio vazio, alegando ter urgência nessa gravação, que achara melhor ele mesmo fazer o trabalho.
Ligou o aparelho de som, ajustou duas câmeras e a morena dançou por duas horas. João estava como que hipnotizado pela mulher. Em um determinado momento, com autorização do gigantesco primo, jogou água na garota que dançava, sua camiseta branca se tornando quase que transparente. Naquela noite eles se despediram e João não foi para casa, mas sim para a ilha de edição, para unificar os dois vídeos.
Durante 3 dias, João chegou tarde em casa. Logo depois de seu turno, ele colocava o tal vídeo em um monitor e ficava lá por horas, vendo a morena dançar.
Finalmente, depois de muito planejar, e de algumas cervejas para tomar coragem, João ligou para a morena novamente, dessa vez ele era o Macho Alfa, o Predador:
_Bem, todos gostaram muito de seu vídeo e é quase certo que você seja a escolhida. Só falta a minha palavra de aprovação para que você seja apresentada como a nova dançarina do grupo. Mas eu só vou dar o meu voto se você for para o motel comigo!
A morena, do outro lado da linha, ficou em silêncio por alguns segundos, mas hoje me parece que ela já esperava por isso. Ou ao menos, desconfiava. Ela concordou e ele foi buscá-la em casa. Claro, ele não queria usar o próprio carro, Deus o livre de alguém ver seu carro entrando em um motel, de modo que foi com o carro do irmão. Na frente da casa da dançarina, ela e o primo gigante o aguardavam. O primo falou sobre horário e que não queria problemas, João também não queria.
No motel, João ligou uma câmera em um tripé portátil e gravou sua noite de paixão com a morena. Na saída, confirmou com a menina que o resultado sairia no final do mês que vem e ela seria a escolhida.
A fita de vídeo foi guardada no fundo de uma gaveta em sua casa, onde ele mantinha material de trabalho. Estava seguro que ali sua mulher não a encontraria.
Dois dias depois de sua aventura, João ligou novamente para a morena, perguntando se ela gostaria de sair com ele novamente. Que agora não era mais pelo emprego, era porque ele havia mesmo gostado dela.
Eu acredito que ela viu nisso uma chance de progressão profissional, ou talvez tenha mesmo gostado dele. Fosse como fosse, ela concordou. Dessa vez, o primo não estava na porta da casa.
Mais umas 3 ou 4 saídas, a dançarina perguntou ao João se daquela vez ele não gostaria que o primo também fosse junto, já que o rapaz havia gostado muito de João, achando-o muito bonito. João recusou, educadamente.
Como as noites de João estavam quase todas ocupadas, muito trabalho na TV, Maria sua esposa, começou a se sentir só e abandonada, ainda mais com a filha pequena em casa. Como ela era -e gostava de ser- uma boa dona de casa, resolveu arrumar as coisas do marido. E lá estava aquela fita estranha, de tamanho incompatível com o vídeo-cassete de sua casa. E aquele dia havia sido um dia particularmente estressante para João, porque a morena havia ligado para a sala de seu chefe, procurando por ele. Ela tinha um identificador de chamadas em casa. Claro que não conseguiu falar com ele, porque aquela não era sua sala, mas o chefe contou a história, em tom de piada, e foi muito assustador para João.
Mais assustador ainda foi quando ele ligou de volta para ela, com a intenção de pedir que não ligasse mais em seu trabalho, mas antes de ter a chance de falar, ela lhe pergunta se o acordo entre eles continua de pé, porque ela havia visto uma das eliminatórias do grupo na TV e o nome dela não estava lá. Ela avisou que não seria bom para João se ele a estivesse enganando.
Ele deu sua palavra, acalmou a moça mas não a si próprio.
Ao chegar em casa, sua mulher com a fita na mão pergunta:
_Meu bem, que fita é essa que não cabe em nosso vídeo-cassete?
Sentindo uma súbita vertigem e um gosto de metal na boca seca, João fala que é de trabalho, que não é problema dela, que ela não pode mexer nas coisas dele; Gritos, caras fechadas, a primeira briga do casal.
João vai dormir, preocupado.
Na manhã seguinte, Maria, com a filha no colo, tenta resolver a questão, já que eles nunca haviam brigado antes. Ela teme que João tenha feito alguma coisa errada no trabalho e que isso venha a lhe dar problemas. Isso apenas o irrita ainda mais, e ela quase não reconhece seu marido. João, furioso, pega a fita e a atira pela janela, oito andares até o concreto da calçada lá em baixo. Ele sai sem beijar a esposa ou brincar com a filha.
Sua esposa liga para a mãe, preocupada com a mudança repentina do marido. A mãe de Maria vai até sua casa e sugere que a filha deve saber do que se trata. Maria então desce até a calçada, recolhe os cacos da caixa da fita e percebe, com um misto de alegria e tristeza, que o rolo da fita permaneceu intacto. De volta ao seu apartamento, Maria pega uma fita de seu vídeo-cassete, desparafusa e abre, remove o rolo de fita que lá se encontra e coloca lá dentro a fita que seu marido jogara pela janela. Como são padrões diferentes, o vídeo-cassete de Maria não consegue ler com muita clareza a fita, mas mãe e filha passam o resto do dia avançando e recuando as imagens, identificando lentamente o seu conteúdo.
Quando João chega em casa, suas malas estão do lado de fora da porta, no corredor. Algumas poucas roupas não foram cortadas ou rasgadas, não por falta de vontade, mas por cansaço de Maria. A fechadura da porta fora trocada e Maria se recusou a falar com ele. A fita, remontada, estava em cima da mala. Uma pequena nota dizia “Filho da puta, eu fiz uma cópia, Nunca mais chegue perto de mim ou de minha filha.” João nunca vira a esposa falar um palavrão, nem nos tempos de namoro. Ele ainda bateu na porta algumas vezes, mas a voz da sogra (e as palavras que ela berrou) o fizeram ir embora.
Se hospedou na casa do irmão. Que era funcionário do Banco Central.
João não deu muitos detalhes sobre a briga e o irmão respeitou. Sabia que eventualmente poderiam conversar e ele faria o seu papel de irmão mais velho. Achava inclusive que João havia feito algo errado, pois Maria era uma menina tão doce. Mas evitou comentários e esperou.
Quase uma semana se passou, João andando pelos cantos da empresa, triste, olhos vermelhos, roupa desalinhada. Ninguém sabia o que havia acontecido, mas era óbvio que ele e Maria estavam separados.
Coincidentemente, foi numa quarta-feira que o resultado do concurso da nova dançarina do grupo de pagode saiu, e ela foi apresentada em uma grande festa. É claro que não era a morena do João. Essa, em frente à televisão, ligou imediatamente para ele, mas foi o chefe de João quem atendeu. E ela fez ameaças sérias, que iam desde surra, passando por estupro até envolvimento da polícia.
Ora, o chefe dele não sabia mesmo de nada, mas a morena ao telefone fora muito convincente e ele achou melhor investigar. Com as datas que ela forneceu, foi até o guarda-noite, para saber o que realmente havia acontecido. O guarda-noite, temendo por seu emprego, contou tudo que sabia.
Porém, a morena tinha um tio que era um policial federal, 30 anos de carreira, linha dura, respeitado e admirado pelos colegas. Ao saber do ocorrido (ou de como a morena relatou o ocorrido) ele mandou prender imediatamente a pessoa que atendera os telefonemas (já que era claro que ele teria feito as ligações) e também o dono do carro que o maldito estuprador e farsante utilizara. A Morena anotara a placa.
O irmão e o chefe de João se esbarraram, algemados, na delegacia, mas não se conheciam e nem foram apresentados.
Era uma prisão com o intuito de interrogar os envolvidos, mas na quinta-feira o irmão de João não foi trabalhar, e os amigos no Banco Central comentavam, à boca miúda, que ele fora preso por estupro.
A mulher do chefe de João foi até a sede da polícia federal liberar o marido (era uma cidade onde todos são parentes de alguém influente) mas a felicidade e o alívio do chefe acabaram quase que instantaneamente, no momento em que ele entrou no carro e a esposa sibilou:
_Traidor miserável, você está tão encrencado, que vai ter muita sorte se meu pai deixar você sair da empresa com suas roupas no corpo!!
Encontrei com João duas semanas depois, em um shopping center. Ele estava sentado em uma cadeira, um dos braços pendendo para o lado. As roupas sujas e é horrível dizer, ele não cheirava bem. Seus olhos estavam muito vermelhos, como se não dormisse há dias. A órbita de um dos olhos estava muito roxa e eu acho mesmo que faltava um pouco de cabelo no lado direito de sua cabeça. Eu o cumprimentei e ele deu um pulo. Olhou para mim com o rosto assustado e se afastou, mancando, apenas um pé calçado. Eu só ficaria sabendo de toda a história daí a alguns dias, mas naquele momento, a única coisa que me ocorreu foi:
“Será que a Maria está sozinha?”
Comentários
Meu, que história envolvente, adorei ler. O João conseguiu acabar com a vida dele e de outras com um passo mal dado.
Bem feito pra ele. Adoreeeei