As Pílulas de Farinha e a Memória Popular


Microvlar

Em 20 de maio de 1998, a empresa Schering do Brasil recebeu uma carta anônima, onde se lia que um lote de seu produto mais vendido, o anticoncepcional MICROVLAR, havia saído da fábrica com as pílulas adulteradas. A carta era acompanhada por uma cartela, com os tais remédios. Pela explicação técnica, eram remédios neutros, sem componentes ativos (os hormônios que impedem a gravidez), usado apenas para, de acordo com a empresa, testar as embalagens.
Mesmo sabendo do problema, a empresa manteve o silêncio e a inação.
Entre os dias 1º e 3 de junho de 1998, três mulheres entraram em contato com o laboratório, informando que, embora estivessem usando o produto, haviam engravidado.  A Schering manteve o silêncio, o que é uma infração direta contra as normas da Vigilância Sanitária, uma vez que, todos os laboratórios são obrigados a informar imediatamente qualquer ocorrência desse tipo.
No dia 18 de junho de 1998 uma reportagem do Jornal Nacional da Rede Globo denunciou o fato.
No dia seguinte, pela primeira vez, os Laboratórios Schering tomaram uma atitude, provavelmente a pior e mais infeliz escolha que poderiam ter tomado. Um representante da empresa foi a uma delegacia e registrou um boletim de ocorrências alegando que um lote de remédios de teste havia sido roubado. No mesmo dia, informaram o fato à Vigilância Sanitária. Vinte e nove dias depois de já saberem do problema e imediatamente após a notícia ter se tornado pública.
A versão da empresa era que uma quantidade desconhecida de cartelas havia sido roubada e depois revendida. O laboratório informou que não dispunha de provas de que o roubo houvesse acontecido, não sabia precisar a data nem a quantidade.
Após a denúncia na televisão, o laboratório também divulgou um documento chamado “Ocorrências com Microvlar” em que informavam à população os números de série das embalagens com produtos que não deveriam ser comercializados. Ainda assim, o referido documento evitava o problema real e sugeria apenas que as mulheres que estivessem tomando as anticoncepcionais desse grupo deveriam também usar camisinhas. O documento não informa ou admite à população que as pílulas não continham hormônios, que eram ineficazes.
A presidência da empresa, naquela época representada por Rainer Bitzer, não só sonegou informações vitais à saúde pública e à população, como também não criou nenhum mecanismo de assistências às usuárias de seu produto que engravidaram.
brasil17

Rainer Bitzer (Foto do site da Revista Veja, Editora Abril)

Em uma atitude típica dos cartéis, a Associação de Empresas Produtoras de Medicamentos saiu em defesa da Schering, dizendo que não se podia condenar uma empresa antes que sua culpa fosse comprovada. Até este momento, nenhuma ação havia sido tomada em favor das consumidoras do produto.
Com o avanço das investigações policiais, as farmácias que comercializaram os remédios inúteis puderam provar que suas compras haviam sido legalmente documentadas e que não se tratava de receptação de produtos roubados.
Obviamente, sem auxílio ou apoio algum da Schering, o caso foi para os tribunais. Em uma das ações, o Juiz Rubens Armador, da Vara de Bauru-SP, deu a seguinte sentença: “pagamento de 3.100 salários mínimos de danos materiais e estéticos para a requerente, mais uma pensão mensal para o recém nascido de 25 salários mínimos até completar 21 anos de idade, garantindo uma qualidade de vida igual a um cidadão nascido na Alemanha, sede do laboratório”. (Fonte: http://meusite.mackenzie.com.br)
Essa ação foi a base para várias outras, embora os Laboratórios Schering nunca tenham oferecido qualquer tipo de ajuda, e apenas pagaram o que foram obrigados pela lei e, ainda assim, depois de recorrer até a última instância.
Uma sentença muito clara do caso pode ser vista aqui: (http://www.altosestudos.com.br/?p=40394)
Em uma entrevista fornecida à revista Veja, o presidente dos Laboratórios Schering foi monossilábico e lacônico, por vezes cínico e omisso. Dois trechos da entrevista dão uma dimensão assustadora do que pode ser interpretado como grande falta de responsabilidade social, por parte do presidente:
”Veja: ­ Que conclusões o senhor tirou até o momento?

Bitzer:­ Nenhuma. Estamos esperando o inquérito da polícia.
Veja: ­ Mas vocês demoraram para tornar o caso público porque faziam investigações internas.
Bitzer: ­ Erramos. Não chegamos a conclusão nenhuma. Suspeitamos de furto. Quando recebemos a carta anônima pensamos que fosse um caso isolado.
Veja: ­ O que é um caso isolado?
Bitzer: ­ Pensamos que fosse uma chantagem.
Veja: ­ Mas uma cartela com a numeração fictícia foi entregue a vocês junto com a carta. Não era o caso de agir de maneira diferente?
Bitzer: ­ Decidimos aguardar outros contatos, que não chegaram.
Veja: ­ Na verdade, chegaram. A comerciante Maria Aparecida Gonçalves ligou para vocês no dia 1º de junho. Só que ela já estava grávida de um mês.
Bitzer: ­ Isso mesmo.
Veja: ­ Por que essa mulher só foi saber o que tinha ingerido no dia 18 de junho? Nesse intervalo de tempo, ela não dormia tranquila. Pensava que o comprimido poderia prejudicar a formação do bebê.
Bitzer: ­ A empresa assume que errou.
Veja: ­ A cartela da Maria Aparecida havia saído daqui com números de lote, data de fabricação e prazo de validade que caracterizavam as cartelas de teste. Não bastava colocá-la ao lado de uma verdadeira para perceber a diferença? Não era um processo simples? Não era o caso de avisá-la, no máximo, no dia seguinte?
Bitzer: ­ Falhamos nesse caso, como em todo o processo de comunicação.”
Veja: ­ Vocês farão algo para garantir que seus produtos são de qualidade?
Bitzer: ­ Nossos medicamentos são fabricados sob normas internacionais de qualidade. Não há por que mudar.
Veja: ­ Isso basta para convencer o consumidor?
Bitzer: ­ Vamos mudar a embalagem do Microvlar.” (Fonte: http://veja.abril.com.br/080798/p_040.html)

O problema foi tão mais longe que, em uma tentativa de recuperar a própria imagem, a Schering contratou a atriz Maitê Proença, que naquela época estava trabalhando em uma campanha de prevenção a saúde. Em poucos meses, outro problema com a Schering, dessa vez cartelas de remédios vazias, fizeram a atriz se afastar e processar os laboratórios por danos à sua imagem pública.
Ainda hoje existem processos esperando julgamento, mas acredita-se que um grande número de mulheres engravidaram nesse período, tomando os remédios ineficazes mas, por falta de conhecimento jurídico, não deram entrada em pedidos de indenização.

Nesse evento, o que mais me chocou foi o cinismo do presidente da empresa. Ao ser perguntado o que fará para convencer o consumidor que seu produto tem qualidade, o irresponsável diz que vai “mudar a embalagem”!! É o que basta? É isso que se faz para nos convencer? É assim que nós somos? Uma embalagem nova e pronto?
Em minha casa, não usamos mais produto algum da Schering, justamente por não concordar com esse tipo de política, usado por essa empresa.
Algumas pessoas não se dão conta da responsabilidade social que possuem ou apenas não a consideram. Uma empresa que vende anticoncepcionais tem uma importância muito grande na saúde pública, possui a confiança quase cega de toda a população para vir a tratar seus consumidores com tamanho descaso, desrespeito e cinismo.
Se esse caso nos ensina alguma coisa é que precisamos vigiar e lembrar.
Ontem, 18 de março de 2013, A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) suspendeu a produção e venda do suco de soja marca AdeS, da Unilever, em todo o país. Na semana passada, a Unilever recolheu o lote de caixas de suco de número “AGB 25”, porque uma falha na linha de produção “resultou no envase de embalagens com solução de limpeza de máquina”! Material de limpeza! Vendido como suco!
Precisamos saber e precisamos lembrar! Porque nós somos os culpados por esse tipo de erro. É nossa falta de cobrança, nossa falta de engajamento, nosso conformismo, nossa permissividade e aceitação que pavimentam o caminho desse expresso de falta de respeito, de consideração humana. Precisamos ser tratados com a importância que temos, não com o valor que nos dão!
Amigos, precisamos nos organizar.
 


















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