Tranqueiras, por quê guardá-las




Eu não jogo nada fora. Guardo tudo! Minha mãe sempre reclamou disso. Duas ex-esposas também.

Minha impressão é que ninguém dá o devido valor às memórias. Eu entendo que uma rolha usada, ao lado do monitor não tem importância alguma, mas ela me lembra o jantar cultural na casa da namorada de meu filho, onde eles organizaram em evento bem legal, e onde eu declamei o poema "Funeral Blues" de W. H. Auden, pra mim um dos melhores exemplos do sentimento que vem com a falta de alguém querido, fico feliz de ter podido mostrar esse poema em uma reunião cultural e não em uma despedida real.

Um boneco grande de um Bug, do filme Starship Troopers, - baseado em um livro do Robert A. Heinlein (O cara era bom! Se tiverem a oportunidade, procurem por livros dele. Recomendo com força "O Gato Que Atravessava Paredes".) e dirigido por Paul Verhoeven - fica em minha ilha de edição em casa, normalmente sobre os monitores. Tá. é um bicho feio e mesmo para quem viu o filme não é a melhor coisa para se ter em casa. Mas tem uma importância grande para mim, me determina uma época e um tipo de ideal que não posso me dar ao luxo de esquecer.

Tranqueiras me definem, determinam quem eu sou. Me lembram de coisas que foram boas e me empurram na direção das decisões que tomei a muito tempo.
Para além das lembranças positivas, guardo também coisas que acho que podem vir a ser úteis, em algum momento futuro.
Guardo fios, cabos, mídias antigas, ferramentas semi-funcionais, notas, contas pagas, documentos vencidos, roupas, presentes antigos, moedas de outros países, mensagens com piadinhas que chegam por e-mail, guardo quase de tudo.

Evito guardar coisas como papel de embrulho, latas de farinha Neston usadas, mas acho que só não guardo por um trauma suave, adquirido de uma tia que tinha a mania esquisitona de guardar realmente TUDO, por anos, e eventualmente abrir uma lata de condimentos, guardada por algumas décadas em um escuro e embolorado armário de madeira e preparar uma comida com aquilo.
Aliás, momentos de perigo, desafio e descobertas de novos sabores!

Mas admito meu apego a objetos. Não sou fanático por dinheiro (tá, gosto dele...) mas me admito materialista no sentido de que gosto de manter pertences comigo, tendo eles valor econômico ou não.
Minha mesa de computador é área proibida a filhos, mãe, namorada, faxineiras...
O que tem ali é de suma importância para mim, mesmo que eu não lembre o que é ou como chegou lá. Minha mesa de computador é meu reduto, meu banco de memórias, minha esfera pessoal.

E, de certa forma, fico feliz em ter encontrado a maneira de exteriorizar minhas memórias, e ter criado um espaço físico para minhas lembranças.

P.S. Abaixo, tomei a liberdade de colocar o poema do W. H. Auden.
Durante toda a minha vida, depois que Elisa, minha primeira filha nasceu, eu tive medo de um dia ter que ler esse poema no enterro de um de meus rebentos. Foi com um certo alívio que eu o declamei no tal evento realizado por meu filho. Ainda assim, mesmo expurgando essa sensação mórbida e incrivelmente real para mim, ainda me dá um nó na garganta e um embargo na voz, sempre que leio essas palavras.



Funeral Blues
W. H. Auden


Parem os relógios, calem o telefone
Evitem o latido do cão com um osso
Emudeçam o piano e com o toque surdo do tambor
Tragam o caixão, que o choro comece.

Que os aviões voem em círculos, gemendo
e que escrevam no céu a mensagem: ele morreu.
Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua
e que guardas de trânsito usem finas luvas negras.

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste
Minha semana de trabalho e meu domingo de descanso,
meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto.
Eu pensava que o amor era eterno; Eu estava errado.

As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma a uma
Guarde a lua, desmonte o sol
Despeje o mar e livre-se da floresta
Pois nada mais poderá ser bom de novo.



Mais do mesmo por Rafaela Lobato
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